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CARTA DE JANGO A KENNEDY NA CRISE DOS MÍSSEIS

 

Brasília, de outubro de 1962.

Senhor Presidente,

 

Recebi com apreço e meditei com atenção a carta em que Vossa

Excelência houve por bem comunicar-me ter sido constatada a presença, em território cubano, de armas ofensivas capazes de constituírem ameaça aos países deste hemisfério. Nessa carta, Vossa Excelência também solicitou o apoio do Brasil para as medidas que o seu Governo proporia ao Conselho da OEA e ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, com fundamento nas disposições do Tratado do Rio de Janeiro e da Carta de São Francisco.

Já é do seu conhecimento o pronunciamento, no primeiro desses

Conselhos, do delegado do Brasil. Quero, entretanto, aproveitar o ensejo para fazer a Vossa Excelência, com a franqueza e sinceridade a que não apenas me autorizam, mas me obrigam o meu apreço pessoal por Vossa Excelência e a tradicional amizade entre os nossos povos, algumas considerações, tanto sobre a posição brasileira em face do caso de Cuba, como sobre os rumos que recentemente vêm prevalecendo nas decisões da OEA.

Vossa Excelência conhece a fidelidade inalterável do Brasil aos princípios democráticos e aos ideais da civilização ocidental. Dentro dessa fidelidade, os nossos países já combateram lado a lado em duas guerras mundiais, que nos custaram o sacrifício de inúmeras vidas e nos impuseram, proporcionalmente e de modo diverso, pesados prejuízos materiais.

Os sentimentos democráticos do povo brasileiro e do seu governo são hoje, porventura, maiores e mais arraigados do que no passado, porque com o volver dos anos e a aceleração do desenvolvimento econômico, fortaleceram-se estabilizaram-se as nossas instituições políticas, sob o princípio da supremacia da lei.

Era natural que paralelamente ao fortalecimento da democracia se desenvolvesse o sentido de responsabilidade internacional, levando-nos a participar dos acontecimentos e problemas não apenas regionais, mas mundiais, para nos situarmos em face deles à luz dos nossos interesses nacionais e dos ditames de nossa opinião pública.

No discurso que tive a honra de pronunciar perante o Congresso norte-americano em 4 de abril de 1962, procurei resumir e enunciar com clareza os aspectos dominantes de nossa posição nos seguintes termos:

 

“A ação internacional do Brasil não responde a outro objetivo senão o de favorecer, por todos os meios ao nosso alcance, a preservação e o fortalecimento da paz. Acreditamos que o conflito ideológico entre o

Ocidente e o Oriente não poderá e não deverá ser resolvido militarmente, pois de uma guerra nuclear, se salvássemos a nossa vida, não lograríamos salvar, quer vencêssemos, quer fôssemos vencidos, a nossa razão de viver. O fim da perigosa emulação armamentista tem de ser encontrado através da convivência e da negociação. O Brasil entende que a convivência entre o mundo democrático e o mundo socialista poderá ser benéfico ao conhecimento e à integração das experiências comuns, e temos a esperança de que esses contatos evidenciem que a democracia representativa é a mais perfeita das formas de governo e a mais compatível com a proteção ao homem e à preservação de sua liberdade”.

 

A defesa do princípio de autodeterminação dos povos, em sua máxima amplitude, tornou-se o ponto crucial da política externa do Brasil, não apenas por motivos de ordem jurídica, mas por nele vermos o requisito indispensável à preservação da independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo.

É, pois, compreensível que desagrade profundamente à consciência do povo brasileiro qualquer forma de intervenção num Estado americano, inspirada na alegação de incompatibilidade com o seu regime político, para lhe impor a prática do sistema representativo por meios coercitivos externos, que lhe tiram o cunho democrático e a validade. Por isso, o Brasil na VIII Consulta de Chanceleres Americanos se opôs à imposição de sanções ao regime cubano, tanto mais que não eram apontados então, como só agora veio a suceder, fatos concretos em que se pudesse prefigurar a eventualidade de um ataque armado.

Ainda agora, entretanto, Senhor Presidente, não escondo a Vossa

Excelência a minha apreensão e a insatisfação do povo brasileiro pelo modo por que foi pleiteada e alcançada a decisão do Conselho da OEA, sem que tivesse preliminarmente realizado, ou pelo menos deliberado, uma investigação in loco, e sem que se tivesse tentado através de uma negociação, como a que propusemos em fevereiro do corrente ano, o desarmamento de Cuba com a garantia recíproca de não invasão.

Receio que nos tenhamos abeirado sem, antes, esgotar todos os recursos para evitá-lo, de um risco que o povo brasileiro teme tanto como o norte-americano: o da guerra nuclear. E é na atuação de Vossa Excelência, no seu espírito declaradamente pacifista, que depositamos a esperança de que não sejam usadas contra Cuba medidas militares capazes de agravar o risco já desmedido da presente situação. Para tudo que possa significar esforço de preservação da paz, sem quebra do respeito à soberania dos povos, pode Vossa Excelência contar com a colaboração sincera do governo e do povo do Brasil.

Não quero encerrar, porém, esta carta, Senhor Presidente, sem acrescentar às considerações nela feitas a expressão de meus receios sobreo futuro imediato da OEA. Nos últimos tempos, observo que as suas decisões vêm perdendo autoridade à medida que se afastam da correta aplicação das suas próprias normas estatutárias, e que são tomadas por maioria numérica com injustificável precipitação. A isso cabe acrescentar a tendência para transformar a Organização num bloco ideológico intransigente, em que, entretanto, encontram o tratamento mais benigno os regimes de exceção de caráter reacionário.

Permito-me pedir a atenção de Vossa Excelência para a violação do art. 2o. da Carta de Bogotá, que se está correndo o risco de cometer para evitar a adesão de novos Estados por motivo de ordem ideológica. Permito-me ainda recordar a aplicação imprópria da Resolução II de Punta del Este sobre vigilância e defesa social, que não autoriza a organização encomendar investigações sobre a situação interna de nenhum país, para evitar que se firam os melindres de Estados soberanos, e que agora se pretende abusivamente invocar justamente para a execução de uma investigação dessa natureza. A esses casos acrescento o da criação do Colégio Interamericano de Defesa.

Este órgão não pode merecer senão a nossa simpatia e cooperação, desde que se limite a apreciar problemas técnicos e de segurança externa, mas seus efeitos podem ser negativos se, a título de problemas de segurança interna, passar ele a estudar questões da competência privativa dos Estados sobre as quais convém que os militares recebam uma formação e orientação puramente nacionais.

Estou certo de que Vossa Excelência compreenderá as razões de minha apreensão. O Brasil é um país democrático, em que o povo e governo condenam e repelem o comunismo internacional, mas onde se fazem sentir ainda perigosas pressões reacionárias, que procuram, sob o disfarce do anticomunismo, defender posições sociais e privilégios econômicos, contrariando, desse modo, o próprio processo democrático de nossa evolução. Acredito que o mesmo se passa em outros países latino-americanos.

E nada seria mais perigoso ver-se a OEA ser transformada em sua índole e no papel que até aqui desempenhou, para passar a servir a fins ao mesmo tempo anticomunistas e antidemocráticos, divorciando-se da opinião pública latino-americana.

Veja Vossa Excelência, Senhor Presidente, nestas considerações, que pretendia desenvolver pessoalmente, ao grato ensejo de sua visita ao Brasil, uma expressão do propósito de melhor esclarecimento mútuo sobre as aspirações e as diretrizes do povo brasileiro.

Renovo a Vossa Excelência a certeza de minha melhor estima e apreço.

 

João Goulart

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